CAPACIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: TOMADA DE DECISÃO APOIADA E CURATELA.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência produziu alterações no regime de incapacidades e trouxe novos instrumentos de proteção dos direitos das pessoas com deficiência.

A Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Lei n. 13.146/15), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, ampliou significativamente o espectro de proteção conferido às pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que reconheceu a importância da autonomia, independência e liberdade desses indivíduos para fazerem suas próprias escolhas.

A referida legislação, portanto, não se limitou a garantir a inclusão das pessoas com deficiência, como também a emancipação pessoal e social destas, garantindo, assim, o exercício pleno de seus direitos, dentre os quais o direito à liberdade, à intimidade e à afetividade.

Houve uma importante mudança relacionada ao regime de capacidade das pessoas com deficiência mental e intelectual, retirando-as da condição de absoluta ou relativamente incapazes que até então ocupavam no ordenamento jurídico.

O Estatuto previu expressamente que a deficiência não afetará a plena capacidade civil da pessoa, a qual terá assegurado o direito ao exercício dessa capacidade em igualdade de condições com os demais (art. 6º), podendo casar-se, constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, decidir sobre o número de filhos, ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar, conservar sua fertilidade, exercer direito à guarda, tutela, curatela e adoção.

Dito isso, não restam dúvidas de que as ideias de deficiência e incapacidade foram desvinculadas. Ou seja, a pessoa com deficiência é, em regra, plenamente capaz. É possível, porém, que haja necessidade de adoção de procedimentos de auxílio para a prática dos atos civis pela pessoa com deficiência, quais sejam, a tomada de decisão apoiada e a curatela.

1. Tomada de Decisão Apoiada

A tomada de decisão apoiada é um procedimento judicial, de iniciativa da própria pessoa com deficiência, que dele se valerá quando pretender a obtenção de auxílio de terceiros para realizar certos atos de sua vida.

É importante que se leve em consideração o significado da palavra apoio, devendo ser compreendida como ajuda, auxílio, proteção. Ou seja, a tomada de decisão apoiada deve respeitar as vontades e preferências da própria pessoa apoiada, não sendo substituída pela vontade de seus apoiadores. Tanto é assim que os apoiadores – a lei prevê que sejam dois – serão escolhidos pela própria pessoa com deficiência, exigindo o Estatuto que se trate de pessoas idôneas, com relação às quais o apoiado mantenha vínculos e possua confiança.

O termo de apoio será apresentado ao Juiz, que ouvirá o Ministério Público antes de se pronunciar quanto ao pedido. Com isso, fica ampliado o espectro de proteção à pessoa com deficiência.

A situação não se assemelha às hipóteses de mero conselho ou palpite. Os apoiadores desempenham um encargo de suporte à pessoa apoiada, cumprindo-lhes zelar pelos interesses desta, inclusive noticiando ao Juiz circunstâncias de negócios jurídicos que possam representar risco ou prejuízo relevante ao apoiado.

A lei não estabelece o prazo mínimo de duração da tomada de decisão apoiada, nem arrola os atos que se submeterão a apoio. Quando o apoiado formula o pedido, é necessário que especifique os limites do apoio pretendido, bem como o seu prazo de vigência. A sentença judicial que julgar esse pedido indicará necessariamente a sua duração.

De outro lado, considerando que a pessoa apoiada é plenamente capaz, a ela é conferida autonomia para requerer a extinção da medida de apoio a qualquer tempo. Também os apoiadores poderão solicitar sua exclusão do processo, sendo ambos os pedidos submetidos à decisão judicial.

2. Curatela

Como visto, há uma via assistencial para a pessoa com deficiência que possui o necessário discernimento para praticar os atos de sua vida: o procedimento de tomada de decisão apoiada. Esse instituto é menos invasivo à esfera pessoal da pessoa com deficiência, garantindo sua autonomia e liberdade. Daí por que deve ser a primeira opção a ser considerada.

A lógica do Estatuto é a seguinte: a pessoa com deficiência é plenamente capaz. Em alguns casos, todavia, o grau de comprometimento da pessoa, em decorrência da deficiência, poderá afetar sua capacidade de expressão da própria vontade. É para essas hipóteses em que há comprometimento da capacidade plena que a curatela se presta.

O procedimento de curatela, portanto, terá caráter excepcional e temporário. Ou seja, a curatela somente será adotada quando realmente necessária para a preservação dos interesses do própria pessoa com deficiência. Prescreve a lei que a curatela deve ser proporcional às circunstâncias do caso e durar o menor tempo possível.

Diferentemente do procedimento de tomada de decisão apoiada, que é de iniciativa exclusiva da pessoa com deficiência, a curatela possui outros legitimados para ingressarem com a ação, dentre os quais se incluem cônjuges ou companheiros do curatelado, seus parentes, o representante da instituição onde esteja abrigado e, na falta desses, o Ministério Público.
Nesse processo, o juiz contará com a ajuda de um expert ou de uma equipe multidisciplinar, os quais têm como função realizar perícia para avaliar e delimitar os atos para os quais haverá a necessidade de curatela da pessoa com deficiência.

Na sentença que decidir o processo, o juiz explicitará seus limites, indicando os atos que esta atingirá, circunscritos às questões patrimoniais e negociais, bem como o tempo pelo qual perdurará, sendo possível, ainda, sua revisão periódica.

Importante referir que a curatela não atingirá atos de índole existencial, de modo que ao curador fica vedado interferir em questões como o casamento, religião, filhos e liberdade sexual.

3. Conclusão.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência alterou significativamente o regime de incapacidades previsto no Código Civil. Por mais difícil que seja mudar mentalidades e desconstruir estigmas, é importante se ter em mente que pessoa com deficiência é, em regra, plenamente capaz para os atos de sua vida.

Não se está, aqui, dizendo que essa pessoa não mereça especial proteção. Pelo contrário, o reconhecimento de sua vulnerabilidade impõe um tratamento diferenciado em diversas questões, o que a Lei de Inclusão garante. A pessoa com deficiência é vulnerável, mas não incapaz.

Nessa toada, os institutos da tomada de decisão apoiada e da curatela devem ser compreendidos como instrumentos de apoio para o exercício da capacidade da pessoa com deficiência, e não limitadores de sua autonomia e liberdade.

As preferências, interesses e vínculos afetivos da pessoa com deficiência devem ser preservados e levados sempre em consideração; seja num, ou no outro procedimento. Até mesmo a curatela, que é excepcional e extraordinária, perde seu caráter de medida substitutiva da vontade.

Tratando-se de regramento bastante recente em nosso ordenamento, o qual rompeu com a lógica anterior do sistema, ainda pendem dúvidas quanto à orientação que os Tribunais pátrios darão a respeito da matéria.
Confia-se, porém, que a compreensão do sistema como um todo dará um norte a essas decisões, afastando a ideia de substituição da vontade, para dar lugar a um modelo de auxílio capaz de garantir a emancipação da pessoa com deficiência em todas as esferas de sua vida, eliminando-se os obstáculos que impedem o pleno exercícios de seus direitos.

*Artigo da advogada Bruna Katz, escrito em coautoria com Raquel Tedesco.